quinta-feira, 23 de maio de 2013

A Ilha


A ilha

Sejamos realistas, façamos o impossível
(Ernesto Che Guevara)

É preciso tirar as lentes antes de ver
antes de ler
antes de ouvir
para não haver mal-entendidos

Em uma ilha no Caribe, a quilômetros de distância geográfica daqui
e a centímetros de distância histórica,
não chegam pessoas com dores de excesso de esforço físico
nos serviços de saúde da zona rural
Ninguém trabalha além do limite do corpo na lida com a terra

Nos asilos - todos gratuitos, chamados lares -
todos os dias de manhã alguém lê notícias para os idosos
que comentam e discutem o que acontece na ilha e no mundo
(num desses lares eu recebi parabéns pelo Brasil ter dado asilo
ao presidente de Honduras depois do golpe)
Ali Dona Mercedes de 86 anos disse transbordando
emoção que é revolucionária até a morte
Dona Cecília me pediu pra dizer a meus companheiros brasileiros
que no país dela os idosos são tratados com muito, muito amor
e é disso que eles precisam

Nos bancos das praças aulas de história e cultura mundial
são dadas por qualquer morador da ilha
Todo dia primeiro de maio milhões saem às ruas
Lá vi alegrias tão sinceras que me entristeceram
e me encheram de esperança
Não há diferença de cor nem de credo

Ali vive um povo de peito feito de muro
povo de cabeça erguida
País que paga muito mais caro pra importar comida e alguns remédios
porque seu vizinho ianque pirracento não quer vender
e quem é que são os terroristas?

A ilha tem formato de jacaré
mas se você olhar bem
a forma de Cuba é uma estrela
estrela-guia vermelha de um horizonte possível
porque um dia seu povo, realista, quis o impossível
Quis e segue querendo o socialismo

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segunda-feira, 20 de maio de 2013

Juanita


Conheci Juanita em uma tarde de terça-feira na Praça de Armas de Arequipa. Sentado, pensando na vida nem percebi ela se aproximando e fui surpreendido com a pergunta “posso sentar aqui, señor?” E eu, que geralmente quando viajo sento nas praças justamente pra esperar que alguém sente pra conversar, aceitei. Faz um tempo que me dei conta de que a melhor maneira de se conhecer um lugar é conversando com as pessoas na rua.
Ela se sentou e reparei que vestia algo parecido com um trapo, muito antigo, no qual ainda era possível distinguir as cores vermelha e branca. Tinha o cabelo meio bagunçado, bem fino e um rosto diferente dos que tinha visto até então na viagem. Parecia nova, 20 e poucos anos. Suspirou e disse que estava cansada, que tinha trabalhado muito. Trazia um aguayo*, mas estava fechado e não pude ver o que levava. Depois de nos apresentarmos e conversarmos sobre o clima e essas coisas que se conversa com desconhecidos ela me perguntou, em um espanhol meio embolado e difícil de compreender:
- O que você sabe sobre os Incas, señor?
E eu que estava há poucos dias no Peru, respondi que quase nada, mas que me interessava muito pela história dos Incas.
- Então você tem sorte, señor, porque eu sou uma Inca.
- Descendente dos Incas, você diz? - Perguntei em meu espanhol embolado com o indisfarçável sotaque brasileiro.
- Não, sou do Império Inca. Uma remanescente. Eu sei que você não vai acreditar em mim, mas de corpo eu tenho 575 anos de idade. Quando tinha 13 anos eu fui sacrificada (é assim que vocês dizem, né?) no cume do vulcão Ampato, aqui por perto. Meu povo acreditava que os vulcões eram deuses e para eles fazíamos rituais com oferendas humanas, geralmente de jovens como eu era. Como lá no alto faz muito, muito frio, todas as oferendas se congelavam e assim durariam para sempre. Meu corpo ficou congelado lá por mais de 500 anos até que um dia um cientista do seu tempo me encontrou, há uns 20 anos, me descongelou e eu tive que voltar a viver neste corpo. Você não acredita no que te digo né? Eu entendo, quase ninguém acredita.
E eu, depois de tantas coisas mágicas já vividas nessa viagem, respondi que acreditava. Acho que fui convincente porque ela continuou com as histórias.
- Vê este tecido da minha roupa? Tem mais de 500 anos também. Vermelho e branco são as cores da nobreza Inca. Minha família era nobre, muito importante para nossa sociedade. Eu bem que queria usar uma roupa dessas que se veste hoje, mas não posso. Tenho que usar essa, em sinal de respeito. Com ela morri, com ela voltei a viver. Sabe, nós acreditamos que vamos e voltamos sempre, que a morte é só uma etapa. Quem era ofertado aos deuses sabia que logo ia voltar, por isso a gente ia embora na mesma posição que a gente fica na barriga de nossas mães pra renascer em outra vida desse mesmo jeito. Foram muitas vidas de lá pra cá, señor, mas não me lembro de nenhuma delas. Não era pra eu voltar pra este corpo, ninguém volta para o mesmo corpo. Mas hoje a ciência é capaz de coisas que alteram o curso natural da vida e da morte e provavelmente eu devo ter morrido subitamente na minha vida anterior a esta pra poder voltar pra este corpo. Deve ter dado uma boa discussão entre os deuses pra decidirem se eu voltava ou não. O que sei é que voltei com a memória da minha vida antes de ser sacrificada, de um tempo em que tudo era muito diferente, muito diferente. Mesmo congelada por tanto tempo, eu sei de muitas coisas, señor, muitas. Conversando com as pessoas depois que voltei descobri que muitas coisas tristes aconteceram com meu povo e com este país que hoje se chama Peru. Você é de que país?
- Do Brasil.
- Ah, Brasil. Todo mundo diz que seu país é muito bonito. E parecem ser um povo bom, que recebe bem e trata bem as pessoas. Os peruanos gostam muito dos brasileiros. Você não é o primeiro brasileiro que me escuta sem achar que sou louca, pelo menos parece que você não acha que eu sou louca. E por quais cidades você passou antes de chegar aqui?
- Vim da Bolívia, passei por Santa Cruz de la Sierra, Sucre, Potosí e Uyuni. De lá fui para o Chile, San Pedro de Atacama e Arica e depois cruzei para o Peru, para Tacna. De lá vim pra cá, cheguei ontem de manhã.
- Potosí...Potosí...Quanta tristeza me dá ouvir ao nome desta cidade. Você foi nas minas? Sim? Todos dizem que é impressionante. Eu nunca fui, porque não tenho dinheiro pra viajar, mas eu sei de parte desta história, quer ouvir?
- Claro - E tanto pela barreira de idioma, quanto pela perplexidade diante da situação de conversar com uma múmia que voltou à vida, me dediquei mais a ouvir Juanita do que a falar.
- Você viu que lá as pessoas mascam coca o tempo todo né? Te conto que não era assim, não era assim antes dos espanhóis chegarem. A coca é nossa folha sagrada, sempre foi. No meu tempo as pessoas também mascavam, mas veja, nunca usamos a coca para enganar a fome, pra substituir alimento. Quando os conquistadores perceberam que mascar coca fazia os índios (não gosto de chamar meus irmãos assim, mas é mais fácil pra você entender) aguentarem mais o esforço físico do trabalho mineiro e diminuía a fome, eles autorizaram o uso da coca que antes tinham proibido e estimularam os índios a mascarem coca o tempo todo. Também foram eles que forçaram esses índios mineiros a criarem o hábito de tomar álcool puro durante trabalho, para ajudar a não sentir fome, como você deve ter visto lá. Tudo isso por ambição, pelo monte de prata que tinha no Cerro Rico. Ouvi que daria pra fazer uma ponte de prata entre Potosí e Madri com a quantidade de metal que saiu de lá para a Espanha. Isso é o que dizem, señor. Também me contaram que até pouco tempo atrás beber álcool puro era muito comum aqui nos Andes fora das minas, em qualquer lugar. Muita gente se viciou e pra quem bebe álcool puro, pisco, cerveja, qualquer outra bebida não faz mais efeito. É um horror.  Os espanhóis mataram muitos de nós logo que chegaram e quando nos inculcaram estes hábitos continuaram matando ao longo dos séculos. E de muitas outras formas nos mataram, señor. Muitas. Conhece essa parte da história, os massacres que sofreu meu povo?
- Faço ideia, mas me conte por favor.
- Ah, foi tudo tão triste, señor, tão triste. Os espanhóis chegaram aqui e viram tanto ouro, tanta prata, tanta beleza que quiseram tudo pra eles. Tínhamos nossos guerreiros, nosso exército, mas as armas deles eram muito superiores. E também nos trouxeram muitas doenças que a gente não sabia curar, isso também foi um massacre. Mas tivemos líderes muito valentes. Já ouviu falar de Túpac Amaru? Dos dois? Não? Pois é, houve um segundo Túpac Amaru. O primeiro foi degolado e as pessoas passaram a acreditar que um dia a cabeça se juntaria de novo ao corpo para libertar meu povo da exploração espanhola. E dois séculos depois outro valente guerreiro adotou o nome de Túpac Amaru e encabeçou uma enorme rebelião indígena. Muitos acharam que a cabeça tinha se juntado ao corpo, como na profecia. Mas a rebelião não conseguiu libertar meu povo. Muita gente morreu, Túpac Amaru II foi preso e condenado a morrer esquartejado, acredita, señor? Esquartejado! Amarraram seu corpo a quatro cavalos para que saíssem em disparada e assim dividir o corpo dele em quatro partes, mas ele não se partiu. Foi preciso uma machadada na cabeça para que nosso guerreiro caísse. Nossos deuses eram fortes, mas não tão fortes quanto a sede por riqueza dos conquistadores. Você ouviu falar das pontes de palha que a gente fazia? Eram impressionantes! Eu acho que foram os deuses que ensinaram nossos cientistas a construí-las, acho que eles já sabiam que um dia viriam os espanhóis. Quilômetros e quilômetros de pontes resistentes, feitas de palha, tiradas da natureza, ligando uma cidade a outra. Quando meu povo viu que a derrota era inevitável, muitas dessas pontes foram queimadas e como eram palha, queimaram rapidamente, deixando muitos lugares inacessíveis. Talvez alguns estejam escondidos até hoje. Quem sabe? Você ainda não foi pra Cusco, né?
- Não, ainda não. É minha próxima parada.
- Repare na quantidade de igrejas católicas em Cusco. Repare que ao lado de algumas delas estão Templos Incas. Não é coincidência. Os espanhóis construíram Igrejas imponentes ao lado, em cima ou no lugar de templos e outros símbolos de nossas crenças. Isso para nos obrigar a ter sua religião, sua cultura. Para nossa sorte, eles não chegaram a encontrar Machu Picchu enquanto o Peru pertencia à Espanha. Se tivessem encontrado, ali seria a maior igreja católica do mundo, com certeza. Ao lado ou no lugar de Machu Picchu. Imagina, señor! Resistimos o quanto foi possível, mas este possível foi pouco. Lá em Cusco você vai ver, ainda restaram alguns templos. Vai ver também um rei Inca bem no meio da Praça de Armas, é muito bonito. Sabia, señor, que na verdade Inca era o nome dos reis? Com o tempo é que passaram a nos chamar também de Incas. Não são todas as pessoas que falam minha língua hoje, é uma pena. O mesmo sangue que corre nas minhas veias corre na maioria dos habitantes desse país, mas nem todos sabem nossa língua original, a dominação foi grande. Eu tive que aprender espanhol pra sobreviver, pra trabalhar. Mas você vai ver como Cusco é bonito. Vai subir até Machu Picchu?
- Sim, vou fazer a trilha Salkantay, você conhece? Não sei se aguento, mas vou subir.
- Sim, conheço, señor. Salkantay é uma montanha sagrada pra nós. Vocês de hoje, se me permite a brincadeira, são uns frouxos comparados às pessoas do tempo que eu nasci. Ouço muita gente dizer que quase morreu no Caminho Inca, quase morreu no caminho Salkantay, acho graça. A gente fazia esses caminhos sempre, eram como as estradas de vocês hoje, parte de nossa rotina. A última vez que eu fiz o caminho até Cusco foi antes de ir para o vulcão Ampato. Fui até lá a pé e voltei, era parte do ritual. Sem quase morrer, como dizem vocês. E  tinha gente que fazia correndo parte desses caminhos que vocês fazem hoje. Eram os mensageiros, que levavam mensagens de uma cidade a outra sem sentir falta de ar em momento algum. Acho engraçado vocês serem assim frouxos. Sabe, señor, falando sobre vocês, ouço hoje muita gente dizer “que horror, os Incas sacrificavam gente”, “como eram atrasados! precisavam mesmo ser civilizados pelos espanhóis”.
- É, eu também já ouvi isso por aqui. As pessoas hoje dizem muita besteira, dona Juanita.
- Eu sinceramente não entendo porque as pessoas do seu tempo se indignam com sacrifício humano. Pelo que vejo e ouço, vocês também sacrificam muita gente em nome de seus deuses.
- Deuses?
- Sim, deuses. Pra mim vocês têm vários deuses, que as pessoas adoram. Têm seus símbolos também, de cada um desses deuses, como é que vocês chamam isso mesmo? Logomarcas, não é? Essas coisas me parecem mais importante pra vocês que qualquer deus. As pessoas veneram produtos e em nome deles muita gente é sacrificada todos os dias. Eu nunca sai daqui, mas sei que aqui e em outros países muitas pessoas trabalham de um jeito que é como uma morte diária, pouco a pouco nas fábricas destas, como é? multinacionais. Sacrifícios humanos sem nenhum ritual, sem nenhum sentido. A diferença é que no meu tempo, os nobres também eram oferecidos aos deuses, essa era nossa crença. Hoje eu vejo que são oferecidos só os mais pobres, os trabalhadores, os que nem tem trabalho. Isso é ser civilizado? Sinceramente, não entendo, señor, não entendo vocês.
- É, eu também não.
- Señor, tenho que ir, já descansei bastante, tenho que voltar a trabalhar - me disse enquanto abria seu aguayo - não quer comprar um gorro feito de lã de lhama? Tenho luvas também, meias... me ajuda, señor, compre algo.
- Estão bonitos, você quem faz?
- Não, señor, eu compro de uma empresa que compra dos artesões da cidade e revendo. Foi o que consegui encontrar de trabalho depois que me descongelaram. É assim. Leva uma? Gracias, gracias, amigo. Cuidate.
Comprei uma luva mesmo sem precisar, agradeci a Juanita pela companhia e ela partiu carregando seu pesado aguayo. Desapareceu nas ruas me deixando com um nó apertado na garganta.

* aguayo - tecido confeccionado a mão na região dos Andes, muito usado pelas mulheres para transportar seus bebês e todas as coisas que levam quando andam longas distâncias.

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terça-feira, 7 de maio de 2013

Saudade


Sentado nessa praça em Arequipa, no Peru, escrevi este poema. Primeiros dias de janeiro de 2013. 
Não é porque tem a palavra saudade, mas achei difícil de traduzir para o espanhol, então vai só em português mesmo:



Saudade

Si quisiera regresar
ya no sabría hacia donde
(Jorge Drexler)


Saudade que senta no banco da praça comigo
Saudade que tento decifrar mas não consigo
Intrigante saudade de nem sei o que
A caneta escreve casa

Palavra intrigante

Se quisesse voltar já não saberia pra onde
sopra uma canção no fone de ouvido
Minha casa tem paredes coloridas
mosaico de casas já vividas
Tem tijolos à vista, fôrmas de ovos de páscoa azuis
borrões amarelos, rosados, vermelhos,
brancos com vinho
e varandas e janelas de apartamentos sem prédios
não tem chão
não tem teto
mas tem muitos quartos
de gente que não está,
deram uma saída
Me deram umas saídas
e não sei quando volto
pra onde volto

Essa saudade que bate à porta agora
talvez veio me entregar o endereço