quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Crônicas e Agudas

Crônicas e agudas

1.
Cada ano 80 mil crianças em todo o mundo
morrem vítimas de doenças evitáveis
Nenhuma delas é cubana
Têm razão, isto não é um dado estatístico.
É um poema vivo

2.
Em Cuba não há:
visitas de representantes da indústria farmacêutica
congressos e viagens pagas pela indústria farmacêutica
bonificações por prescrição da indústria farmacêutica
estudos confiáveis encomendados pela indústria farmacêutica
Os do aeroporto de fortaleza estão certos:
os escravos cubanos são mal fôrmados               

3.
Doutora, eu não me engano
sua vaia orgulha o feliciano

4.
Doutor, se eu não me engano
o diploma do seu filho médico é cubano

5.
Se temos algo a ensinar aos cubanos sobre atenção primária
são esses nossos tratamentos tapa buraco
para os adoecimentos do trabalho inoculados pelo capitalismo

6.
Se os médicos cubanos são escravos
se os jornalistas da veja são livres
alguém por favor me diz
onde assino minha carta de desalforria?

7.
Me perdoe se for preconceito
mas faltam médicas no Brasil com cara de empregadas domésticas,
não?

8.
Qual é o CID pra racismo?

9.
Antes de falar da pobreza em Cuba
olhe pro seu umbigo
mas olhe direito

10.
Advertimos ao Ministério da Saúde:
pintar a ponta do iceberg de vermelho
até nos distrai
mas não nos engana
Os sintomas persistirão
enquanto a saúde for mercadoria
(como o coro já dizia)

11.
Mais que mais médicos
só com mais rua
mas cuidado!
fiquemos longe desses vândalos do white bloc

e seus coquetéis xenofobov

(Lucas Bronzatto)

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Algumas das notícias que estão nas entrelinhas deste poema:

Itinerando com a Itinerância

O irmão e poeta Guilherme Salgado vem lançando seu livro Itinerância Poética em encontros cheios de poesia e beleza Brasil afora.
Parte desta aventura foi feita em um fusca e pouco a pouco é relatada para o mundo virtual em seu blog: www.itineranciapoetica.blogspot.com.br no qual também estão alguns dos poemas deste e dos outros livros que virão. No Sarau da Cooperifa, em São Paulo, o fusca foi pintado de poesia e deixei algumas palavras também, como se vê na foto abaixo.
Visitem o blog para conhecer mais de suas itinerâncias que logo logo romperá as desnecessárias fronteiras de nossa América Latina!


domingo, 25 de agosto de 2013

Tenho (Nicolás Guillén)

Tenho

Quando me vejo e toco
eu, João sem Nada ontem,
e hoje João com Tudo,
e hoje com tudo,
passo os olhos, olho,
me vejo e toco
e me pergunto como pôde ser.

Tenho, vamos ver,
tenho o prazer de andar por meu país,
dono de tudo que há nele,
olhando bem de perto o que antes
não tive nem podia ter.
Colheita posso dizer,
monte posso dizer,
cidade posso dizer
exército dizer,
já meus para sempre e teus, nossos ,
e um largo resplendor
de raio, estrela, flor.

Tenho, vamos ver,
tenho o prazer de ir
eu, camponês, operário, gente simples,
tenho o prazer de ir
(é um exemplo)
a um banco e falar com o administrador,
não em inglês,
não em senhor,
mas dizer-lhe companheiro como se diz em espanhol.

Tenho, vamos ver,
que sendo um negro
ninguém pode me deter
na porta de uma danceteria ou de um bar.
Ou então na recepção de um hotel
gritar-me que não há quarto,
um mínimo quarto e não um quarto colossal,
um pequeno quarto onde eu possa descansar.

Tenho, vamos ver,
que não há guarda rural
que me agarre e me prenda num quartel,
nem me arranque e me expulse da minha terra
no meio do caminho real.
Tenho que como tenho a terra tenho o mar,
não country
não railáif
não tenis não yacht,
mas de praia em praia e onda em onda,
gigante azul e aberto democrático:
enfim, o mar.

Tenho, vamos ver,
que já aprendi a ler,
a contar,
tenho que já aprendi a escrever
e a pensar
e a rir.
Tenho que já tenho
onde trabalhar
e ganhar
o que tenho que comer.
Tenho, vamos ver,
tenho o que tinha que ter.

(Nicolás Guillén, 1964)

tradução livre por Lucas Bronzatto

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Nicolas Guillén (1902-1989)
Poeta cubano, de vasta e bela obra, considerado o "Poeta Nacional" em seu país.