domingo, 27 de maio de 2012

Um domingo metropolitano qualquer

Domingo em São Bernardo

Hipermercados transbordam
carros
pessoas
promoções de produtos que não preciso
e que talvez ninguém precise

Nas ruas os porta-bandeiras urbanos
divulgam os novos condomínios paradisíacos
que sempre são lugares de sonhos
que não os meus
São muitas as placas humanas nas calçadas
alçando estandartes de construtoras
cujos mastros servem para proteger do sol ardente
e esconder a cara de fome
que a quentinha fria não conseguiu matar

Nos carros jovens casais gastam seus domingos
colecionando folhetos com lindos prédios, jardins
playgrounds, cinemas particulares e famílias felizes
que vão compondo o mosaico daquilo que chamam de sonho
Depois visitam escritórios
de gente engravatada em pleno domingo de sol
antes de afogar as mágoas do pesadelo da dívida eterna
comendo um hambúrguer no shopping lotado
de gente que veio encher seus vazios com consumo

Também tem muita gente em suas casas
arrumando quartos, salas, cozinhas
cabeças, corações e corpos atropelados
pela correria da semana
ou pela noite anterior

Claro como sempre há almoços de família
frangos assando em padarias
e restaurantes cheios de mesas agrupadas
mas a minha mesa é quase sempre pra um

Diante de possibilidades de domingo como estas
acabo sendo o tipo estranho
que vai a um parque qualquer
tomar um mate sozinho
ficar de meia
ler um livro
escrever esse poema
sob olhares esquisitos de quem passa
ouvir ao fundo o som das crianças gritando
pássaros cantando
e me alegrar por saber
que ainda existem pessoas que levam seus filhos
pra brincar nos parques aos domingos
andar de bicicleta ao ar livre
subir em árvores
e até fazem discretos e quase envergonhados

piqueniques

(Lucas Bronzatto)

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Bela arte feita pelo amigo Gabriel Bordignon (www.cafeteiraitaliana.blogspot.com.br)

Mario Benedetti - Quemar las naves (tradução)

Mais uma pequena homenagem:


Queimar as naus
(Mario Benedetti – tradução livre por Lucas Bronzatto)

O dia ou a noite em que por fim chegarmos
será preciso queimar as naus

mas antes teremos metido nelas
nossa arrogância masoquista
nossos escrúpulos molengas
nossos menosprezos por sutis que sejam
nossa capacidade de ser menosprezados
nossa falsa modéstia e o doce sermão
da autocomiseração

e não só isso
também estarão nas naus a queimar
hipopótamos de wall street
pinguins da otan
crocodilos do vaticano
cisnes do buckingham palace
morcegos do el pardo
e outros materiais inflamáveis

o dia ou a noite em que por fim chegarmos
será preciso sem dúvida queimar as naus
assim ninguém terá risco nem tentação de voltar

é bom que se saiba desde já
que não haverá possibilidade de remar noturnamente
até outra margem que não seja a nossa
já que será abolida para sempre
a liberdade de preferir o injusto
e nesse único aspecto
seremos mais sectários que deus pai

no entanto como ninguém poderá negar
que aquele mundo arduamente derrotado
teve alguma vez traços dignos de menção

para não dizer notáveis
haverá de todos modos um museu de nostalgias
onde se mostrará às novas gerações
como eram
                      paris
                      o whisky
                      claudia cardinale

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Hombre preso que mira a su hijo (tradução)

Mais uma homenagem a Mario Benedetti, no mês de sua morte: Uma tradução de um de seus poemas políticos mais densos e bonitos, Hombre preso que mira a su hijo, do livro "Treze hombres que miran"
Escrito na época da ditadura, expressa em versos a conversa de um preso político com seu filho diante dele:



Homem preso que olha para seu filho
(Mario Benedetti – tradução livre por Lucas Bronzatto)

Quando eu era como você me ensinaram meus pais
e também as professoras bondosas e míopes
que liberdade ou morte era uma redundância
quem podia imaginar em um país
onde os presidentes andavam sem capangas

que a pátria ou a tumba era outro pleonasmo
já que a pátria funcionava bem
nos estádios e nos pastoreios

realmente meu filho eles não sabiam nada
pobrezinhos acreditavam que liberdade
era só uma palavra aguda
que morte era palavra grave
e cárceres por sorte uma palavra esdrúxula

esqueciam de por o acento no homem

a culpa não era exatamente deles
mas sim de outros mais duros e sinistros

e estes sim
como nos espetaram
na limpa república verbal
como idealizaram
a vidinha de vacas e estancieiros

e como nos venderam um exército
que tomava seu mate nos quartéis

a gente nem sempre faz o quer
a gente nem sempre pode
por isso estou aqui
olhando pra você e sentindo sua falta

por isso é que não posso te despentear o cabelo
nem te ajudar com a tabuada do nove
nem te golear numa pelada

você já sabe que tive que escolher outras brincadeiras
e que brinquei todas elas de verdade

e brinquei por exemplo de polícia e ladrão
e os ladrões eram policiais

e brinquei por exemplo de esconde-esconde
e se te descobriam te matavam
e brinquei de pega-pega
e escorria sangue de quem era pego

meu filho ainda que tenha poucos anos
acho que tenho que te dizer a verdade
para que não a esqueça

por isso não te escondo que me deram choques
que quase me arrebentam os rins

todas essas chagas inchaços e feridas
que seus olhos redondos
olham hipnotizados
são duríssimos golpes
são botas na cara
muita dor para que te esconda
muito suplício para eu apagar

mas também é bom que saiba
que teu pai calou
ou xingou como um louco
que é uma linda forma de calar

que teu pai esqueceu todos os números
(por isso não poderia te ajudar nas tabuadas)
e portanto todos os telefones

e as ruas e a cor dos olhos
e os cabelos e as cicatrizes
e em qual esquina
em que bar
que parada
que casa

e lembrar de você
da tua carinha
me ajudava a calar
uma coisa é morrer de dor
e outra coisa é morrer de vergonha

por isso agora
você pode me perguntar
e mais que tudo
eu posso responder
a gente nem sempre faz o que quer
mas tem o direito de não fazer
o que não quer

chore apenas meu filho
é mentira
que os homens não choram
aqui choramos todos
gritamos berramos assoamos esperneamos
porque é melhor chorar que trair
porque é melhor chorar que se trair

chore
mas não esqueça

--

Audio de Mario Benedetti declamando: http://www.youtube.com/watch?v=oAKUxN-LCZw

--

Há três anos falecia don Mario, fica aqui esta homenagem.. 

Que seja também um grito para se juntar ao coro dos outros gritos pela abertura dos arquivos da nossa ditadura, por Comissão da Verdade de verdade.
Basta de impunidade!
¡Ni olvido ni perdón! 
Link interessante sobre o tema: www.torturanuncamais-sp.org/

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Três poemas benedettianos


3 poemas que têm em comum um mesmo poeta que não sou eu, seu lugar, seu estilo. Respirar o ar de Montevideo é também respirar seus versos, que invadem e geram novos versos. Aqui um para ele, um com o estilo dele e outro com o que o lugar dele deixou em mim. E o choque disso com um dia em que o trânsito da cidade estava caótico. Optei por não traduzir o primeiro, fiz ele em espanhol (é o primeiro que faço em espanhol) e tem partes que se traduzisse perderia a graça. Talvez um dia eu traduza, mas agora achei legal mantê-lo assim, como saiu.
Maio é o mês em que morreu o poeta, novelista, contista, ensaista e revolucionário Mario Benedetti. No dia 17, há 3 anos. Tentarei fazer mais homenagens esse mês.
Gracias, Mario

Benedettianos
(Lucas Bronzatto)

I - Hablando con él

Ahora te comprendo um poco más
querido Mario
sos tu pais en forma de verso
Aunque no estés más aqui
tu sonrisa sigue viva
cada abuelito uruguayo tiene tu rostro simpático
dice mi amiga

El amor que tanto cantaste sigue vivo
camina y baila por las calles otoñales
Invitanos a bailar

Tu puño izquierdo sigue vivo
golpeando
en los muros de la universidad
en un verso de tu amigo Silvio en otro muro
en actos contra el olvido y por la memoria
en plaza Libertad que sigue sin baldosas

El silencio de tu pais sigue vivo
No reina más
pero sigue
abre camino a las nostalgias
y me permite comprenderte aún más
querido Mario

Tu pais invoca nostalgias
Saca nostalgias de rinconcitos de las almas
a veces casi olvidadas
a veces llenas de memoria
Los parques los cafés
las esquinas las ferias
las librerias las plazas
el hecho de mirar al mate desde arriba
y tomarlo
la cordialidad de la gente
el amor de la gente por ti
son gatillos
buenas trampas desplegadoras de nostalgias

Tu paisito de cola de paja
ha sido para mi um espejo
con una esquina rota, seguro

Me voy con nuevas nostalgias
nuevos silencios nuevas sonrisas
que con la mano izquierda
que no es la del mate y del termo
en una esquina rota del tiempo, seguro


II - (R)Evolucionismo
Como seria diferente meu país
se as pessoas pensassem menos como Lamarck
e mais como Lamarca


III - De Regreso

Faz falta andar com a garrafa térmica debaixo do braço
O ouvido estranha o português nas ruas
O verde que falta, o cinza que sobra
Já falta aquele afeto, aquele cuidado
Caminho sozinho
Tento imaginar que as ruas não são essas
Que têm corredores de árvores de folhas amarelas
ao invés de corredores de ônibus enfileirados
Mas o buzinaço me atordoa e a imaginação me escapa
Volto para o Real e o Peso está no cotidiano