domingo, 16 de dezembro de 2012

Espelho


Mais um exercício do Tantas Letras, uma das minhas primeiras tentativas de escrever um conto.. Lá vai:

Espelho

“Não tem nada tão insuportável quanto cortar o cabelo, não acha? São os minutos mais desesperadores pra mim dessa merda de dia que sempre chega a cada dois meses, por mais que a gente não queira”, me disse Fábio antes de pedir a primeira cerveja. À minha cabeça vieram os versos de ‘Walking Around’ do Pablo Neruda, que chorava a gritos quando sentia o cheiro das barbearias e comecei a formular a hipótese de que talvez ele estivesse cansado de ser homem como o poeta chileno, mas fui interrompido antes do poema chegar ao fim quando Fábio disse que não suportava ter que se olhar no espelho por tanto tempo. Nem ouviu meu desconcertado “como é que é” quase cuspindo a cerveja da boca e mudou de assunto perguntando se eu achava mesmo que o Ganso iria render alguma coisa no meu time de merda, quer dizer o Cisne, e caiu na gargalhada e lembrou do tempo que a gente assistia jogos de futebol nas quartas tomando a cerveja mais barata que encontrávamos na distribuidora de bebidas e falou tanto, sem parar, de tantas coisas amenas que perdi o fio da meada, o tempo de bola para voltar no assunto do barbeiro mesmo não tendo ouvido quase nada depois daquele “não suporto me olhar no espelho tanto tempo” que batia feito martelo no meu ouvido. Nada mais poderia descrever tão bem a vida que Fábio leva do que esta cena de não conseguir encarar um espelho por tanto tempo. Quanto tempo demora um corte de cabelo masculino em uma barbearia? 20, 30 minutos no máximo. Ele não se suportava tanto tempo.
Na vida apressada dele os minutos voam, escorrem pelas mãos como naquela música do Lulu Santos que voltou a tocar nas rádios na nossa época de faculdade, depois que ele lançou algum daqueles discos com novas roupagens de seus velhos sucessos. O acelerado modo de vida da cidade grande caiu como uma luva em suas mãos que hoje alternam teclados de computador, apertos em outras mãos, os braços rechonchudos da sua filhinha Sofia, o ferro que levanta na academia três vezes por semana, o controle remoto, o cartão de crédito e as raras carícias na esposa Letícia, o grande amor com quem se casou quando se achou velho demais aos 27 anos para continuar solteiro.
Nem sem querer pensa em voltar para o lugar que nasceu, porque aqui na cidade que não dorme tem acesso a tudo que quiser, a qualquer hora. Orgulha-se do amor ao trabalho que o paulistano sente e se identifica tanto que às vezes sem querer acha que nasceu no lugar errado. Ama tanto seu trabalho que passa mais tempo lá que em qualquer lugar e o que usufrui, na prática, da cidade que tem tudo e não dorme é a possibilidade de ir ao hipermercado às onze horas da noite, que vai com Letícia uma vez a cada quinze dias depois da academia. Engraçado imaginar que alguém que etiquetava com seu nome os ovos que guardava na geladeira da república que morava e gravava com uma faca suas iniciais nas maçãs que pegava no restaurante universitário antes de colocar na cesta de frutas da casa fosse um dia dividir as compras de mercado com alguém.
Lá pela terceira cerveja depois de uma série de nostalgias me contou que tem passado a maior parte do seu tempo livre em casa, principalmente depois que ampliou o pacote de canais da NET para ter acesso à ESPN e ao SporTV em HD e comprou a nova TV de LED com o cabo pra conectar o notebook e ver vídeos engraçados do youtube em alta definição e que ultimamente até tem saído mais aos fins-de-semana e feriados pra conhecer a cidade, pois ele e Letícia estão procurando um apartamento para comprar. Agora que está estável na empresa finalmente vão conseguir realizar o sonho de terem seu canto para morar, pra Sofia crescer com segurança. “Já temos um carro cada um, uma filha, sabe como é, tá na hora da casa própria”. Contou que esses dias foi conhecer o centro e não achou tão ruim quanto todo mundo diz. Foi almoçar no Mercadão depois de ir com a esposa e a neném na vinte e cinco de março comprar uma árvore de Natal para simbolizar a nova família que começaram este ano depois da festa maravilhosa que deram em janeiro e que não conseguia lembrar sozinho quem da nossa turma tinha ido.
Aproveitou a deixa para perguntar se tenho encontrado o pessoal e fiz que sim com a cabeça, sem mais detalhes e ele me disse, com ar de tristeza, que quase ninguém o procura e que sente falta de encontrar a galera, que achava uma pena que as vidas de cada um tenham tomado rumos tão diferentes que dificultam tanto os reencontros. Ainda pausado na cena do barbeiro não tive forças para lembra-lo da rara e privilegiada coincidência de que mais da metade da turma da faculdade veio parar aqui e vive sob o mesmo céu cinza que enfeita nossa conversa agora e que eu, mesmo sem ter carro, continuo “encontrando o pessoal” com frequência. E me dei conta de que Fábio era do tipo de gente que vê um encontro de amigos como um evento, não pela grandiosidade, mas pela necessidade de planejamento prévio, que geralmente prefere que seja por e-mail. O mesmo tipo de gente que nunca atende o telefone de primeira, quase nunca pode ou sempre vai ver se dá pra tomar um café ou uma cerveja combinada de última hora que obrigaria a mudar os planos que tinham para a preciosa noite. Mas hoje ele abriu esta exceção e aproveitou que perdeu a aula de natação porque o corte de cabelo demorou mais que imaginava e me ligou pra ver se por acaso eu estava disponível para trocar “aquela ideia”. Não vi problema em deixar para depois o que ia fazer hoje e topei. Quase nunca vejo problema nisso. Passada a surpresa da ligação, notei que o último registro do número dele no meu celular era de cinco meses atrás.
Já estávamos na quinta cerveja quando perguntei se ele tirou a poeira do violão e voltou a tocar como nos tempos da faculdade. Ele disse que resolveu vender porque não tinha mais onde guardar depois que montaram o quarto da Sofia mas que foi uma boa porque o dinheiro ajudou a pagar parte da conta de uma noitada em um bar que sempre vai com a Letícia para beber cervejas importadas. Comentou em seguida que soube pelas fotos do meu facebook que eu fui pra Cuba e disse que sua mulher está louca para conhecer as praias do Caribe mas que agora não dá por que a Sofia ainda é muito pequena e caiu na gargalhada quando eu disse que fiquei lá um mês e fui à praia só uma vez e que achei bem bonita mesmo e depois de um debochado “cara, você não existe!” perguntou mantendo a ironia se eu ainda lia aquela revista que eu costumava emprestar para as pessoas na época da faculdade dizendo que tinha mudado a minha vida e eu respondi que continuo assinando Caros Amigos e que ainda sigo sonhando e tentando mudar o mundo. E me perguntou se eu não achava que quando a gente tenta mudar o mundo a gente não acaba deixando de viver a própria vida, de fazer o que gosta e o telefone dele tocou e então era preciso pedir a conta e era preciso ir.
Depois de pagar a conta, um aperto de mão, tapinha nas costas, seu sapato sem querer pisou no meu dedão fora do chinelo, Fábio pediu desculpas e se despediu dizendo: “Falou brother, aquele abraço hein?!”
Mas não deu abraço nenhum. 

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Pessoal, nos próximos dois meses o blog ficará parado, pois estarei viajando e não vou conseguir postar nada aqui.  Volto em fevereiro com mais alguns cantos tortos... 
Um bom ano novo a todos/as vocês, que seja mesmo um momento de grandes mudanças no mundo, porque estamos precisando.

3 comentários:

  1. Muito bom o conto, Lucas. E esse seu amigo, hein? Tadinho dele... tadinhos de todos nós que somos muito parecidos com ele! Nessa vida louca que deixamos nos controlar! Que venham outros contos...por que a análise tá muito cara! kkk
    Abraços!

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  2. Se não fosse a filha, o recente reencontro e a cidade de São Paulo, Fábio até rimaria com Murilo, é o primeiro que leio e não será o último. Grande abraço Lucas, de seu antigo e querido amigo de república

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  3. Não tinha lido este poema teu ainda.
    Obrigada por colocar em palavras a agonia que nos traz a vida sem sentido, vida esta que acabamos "tolerando", e entendendo como certeza e verdade absoluta...
    Bj!

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