terça-feira, 10 de abril de 2012

Quitéria

(Para ler em um fôlego só)

Quitéria
(Lucas Bronzatto)


Quitéria chora pela belezura que não está mais
no rosto no espelho que não olhava há 28 anos
aprisionada abandonada mutilada impregnada de haldol
de desprezo de desgosto chora
quando lembra que era apaixonada por quem era
nem lembra quem era nem o que é paixão
no chão grita se desespera espera por uma vida nova
nem lembra o que é vida o que é sábado
não sabe de onde veio essa velha o que é vela
o que é aniversário onde revela o velho negativo de seu rosto
apagado da memória da família onde nunca coube
Quitéria chora e agora a hora é de recomeçar
Cavocar no que restou da Quitéria que não tem belezura
no rosto no espelho só tem as marcas cicatrizes
olheiras e sulcos facetas da injustiça
que o capitalismo cravou pra sempre na sua face
usando mãos que fazem de letras ilegíveis lucros
lobbies e livraimes desses males o mais rápido possível
apagando pouco a pouco o muito que há dentro
de quitérias joaquins beneditas severinos siclanos beltranos
fulanos fumando bebendo gritando chorando sofrendo
usando roupas coloridas demais coloridas de menos
tirando a roupa no meio da rua se indignando
amando demais amando de menos
calando-se todos.
calabocas injetáveis
calabocas comprimidos
calabocas em gotas

com gosto de tutti-frutti
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Quitéria, por Camila Avarca

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Esse poema é inspirado em uma das histórias de usuários dos serviços de saúde mental, que aconteceu em São Bernardo do Campo - SP, município onde trabalho. Eu não vivi, mas me contaram e eu tentei expressar o que me cortou a carne em um poema. 
Quitéria (nome fictício) morou por muitos anos no hospital psiquiátrico existente na região. Foi retirada de lá para morar em uma Residência Terapêutica, um serviço substitivo ao hospital psiquiátrico, uma casa onde mora com outros portadores de transtornos mentais, parte deles ex-moradores de hospitais psiquiátricos. Momentos depois de chegar na casa em que ia morar, Quitéria desabou em lágrimas, chorava e gritava desesperadamente. Gritava que queria de volta sua belezura, que tinha perdido sua belezura. Como em quase todas as casas, diferente das prisões e hospitais psiquiátricos, lá tinha um espelho e Quitéria se olhou no espelho depois de quase 30 anos e não se viu mais. Seu rosto mudou e sua belezura se foi depois de tantos anos de prisão.
Quitéria é só uma das muitas e muitos que perderam sua identidade nos hospitais psiquiátricos de nosso país e de tantos outros países. Há muita gente disposta a lidar com a saúde mental de outra forma, sem exclusão, é longa a trajetória da Luta Antimanicomial no Brasil e no Mundo, e também já há um tempo existe a Lei da Reforma Psiquiátrica, que vem para reorientar a atenção dada a estes usuários, regulamentado a criação de novos serviços como a Residência Terapêutica, os CAPS, Centros de Convivência (uma busca no google e você acha!). São Bernardo tem avançado bastante na implantação desta lei, tirando quitérias, joaquins, beneditos, severinos de suas prisões e reinserindo na sociedade. É bastante possível.
Afinal, como dizem, de perto ninguém é normal...
Obs: O desenho, feito pela grande amiga e artista Camila Avarca, é só um começo de algo que está por vir..